Em um trânsito cada vez mais caótico e ciclovias com problemas, quem opta por usar a bicicleta na capital gaúcha enfrenta um cenário adverso.
Andar de bicicleta em Porto Alegre pode ser encarado como um desafio. Já pensou desviar, todos os dias, de motoristas nervosos e estressados em um trânsito cada vez mais caótico? Ou então ter, depois de muito tempo de lutas e discussões, um local exclusivo para o uso de sua bike, mas ele ser utilizado, ou melhor dizendo invadido, por pessoas que não deveriam estar ali? Ou pior ainda ser encarado como um estorvo, algo que atrapalha a fluidez de nosso bom e velho trânsito planejado para nossos lindos e robustos veículos automotores? Os ciclistas da capital dos gaúchos enfrentam esses problemas todos os dias.
De acordo com dados da Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC), somente no último ano (2013) ocorreram 230 acidentes envolvendo ciclistas em Porto Alegre, com nove vítimas fatais, quase o dobro de 2012 que teve cinco mortes. Segundo dados do Departamento Estadual de Trânsito do Rio Grande do Sul (Detran/RS), no primeiro trimestre deste ano 31 ciclistas morreram no estado do Rio Grande do Sul, o que da uma média, assustadora, de um ciclista morto a cada três dias no RS.
Uma das principais reclamações dos ciclistas em relação ao trânsito é a falta de um planejamento que busque equilíbrio entre os modais que interagem nele. A jornalista e cicloativista Lívia Araújo, que também é sócia da empresa Bike Drops, que desenvolve capas de chuva para ciclistas, acredita que um dos principais problemas enfrentados por quem anda de bicicleta pela cidade é o descaso por parte dos órgãos públicos.
“A prefeitura não olha para o ciclista, e nem para o pedestre, como alguém importante para a vida da cidade. Ela prioriza todas as iniciativas de trânsito para os carros”, lamenta. Lívia também cita que esse menosprezo incentiva todos os outros problemas para quem anda de bicicleta.
“Esse problema principal acaba acarretando todos os outros, porque quando existe desrespeito é porque as leis não são claras. As pessoas às vezes não têm noção que estão cometendo um ato perigoso e nem do risco desse ato, e, infelizmente, sabem que não vão ser fiscalizadas e punidas por isso”, alerta Lívia.
Muitas vezes as pessoas desistem de tentar dar as primeiras pedaladas pela cidade por sentirem um clima de insegurança. O vereador de Porto Alegre Marcelo Sgarbossa, que defende o uso de bicicletas como algo saudável e consciente em relação ao meio ambiente, diz que esse receio freia o avanço no número de pessoas que usam a bicicleta como meio de locomoção.
“Quando se elaborou o Plano Diretor Cicloviário, em 2009, foi feita uma pesquisa para saber por que as pessoas não utilizavam bicicletas. Em torno de 80% ou 90% dos entrevistados disseram que não usavam pelo risco de serem atropeladas”, ressalta.
As ciclovias são encaradas por muitos como a solução dos problemas dos ciclistas. Segundo dados do site da EPTC, Porto Alegre conta com cerca de 20 quilômetros de ciclovias espalhadas pela cidade. Mas basta um pequeno passeio por algumas delas para observarmos problemas, desde o conflito pelo uso compartilhado, e errado, por ciclistas e pedestres até a cor escolhida para pintá-las.
“As ciclovias estão sendo feitas na lógica do carro. Elas são estreitas e, em alguns lugares como na Ipiranga, ela muda de lado. Na da Rua Sete de Setembro, o ciclista disputa espaço com os pedestres. Tudo isso quebra o princípio de directibilidade”, acentua o vereador.
Outro fator citado por Sgarbossa é a cor escolhida para demarcar as ciclovias, que segundo ele não é a mais adequada: “A cor vermelha é um elemento de tensão. A tinta quando pega o sol fica muito luminosa e isso atrapalha a visão do ciclista”.
Espaço dividido na ciclovia
Basta ficar observando por cerca de cinco minutos a ciclovia da Avenida Ipiranga, no trecho entre as avenidas Edvaldo Pereira Paiva e Borges de Medeiros, para presenciar alguma encarada feia ou até mesmo pequenas discussões entre ciclistas e pedestres com o barulho de campainhas como som de fundo. Esse desconforto acontece pelo fato de a ciclovia ter sido construída onde antigamente era uma calçada para pedestres, que a continuam usando, disputando espaço com os ciclistas.
“O ciclista pra eles (motoristas) é alguém que atrapalha o trânsito, que diminui o fluxo, que deveria andar na calçada e não uma pessoa que está tirando um carro do trânsito”.
Muitos ciclistas são obrigados a ficar desviando do alto número de pessoas circulando pelas ciclovias. “Isso quebra o ritmo da pedalada. Há muitos pedestres na ciclovia já que às vezes eles não têm calçadas boas para circular e isso provoca até alguns choques. É complicado. Se você anda na rua o cara do carro te manda pra calçada e se tu anda na calçada o pedestre te manda pedalar na rua”, desabafa o engenheiro Alessandro Borges, 37 anos, que costuma andar de bicicleta por lazer.
Alessandro faz mais uma observação em relação à forma como o ciclista é encarado pelos motoristas. “O ciclista pra eles é alguém que atrapalha o trânsito, que diminui o fluxo, que deveria andar na calçada e não alguém que está tirando um carro do trânsito”, acentua o engenheiro.
“Nós aqui dividimos o espaço com os pedestres e é complicado, pois tu tens que reduzir, esperar, manter uma distância e principalmente manter a calma senão você acaba fazendo um strike”, alerta o ciclista e trabalhador de uma empresa de comunicação visual Harley Bastilho, 37 anos, que anda de bicicletas desde criança. Bastilho também faz outra reclamação em relação a cultura de que o ciclista está brincando e não utilizando um meio de transporte.
“Eu uso a bike como trabalho, não como esporte. Tem cara que vê o ciclista como vagabundo, que está apenas passeando e é só lazer, mas não, a minha bicicleta é o meu veículo de transporte”, desabafa Harley.
Espaço pensado para os ciclistas
Muitas vezes os trabalhadores que cogitam a ideia de ir ao serviço usando a bicicleta como meio de transporte acabam desistindo graças a um detalhe, que parece simples, mas que faz toda a diferença, na hora de tomar essa decisão: a falta de lugares adequados para tomar banho e guardar suas bicicletas.
No auge do calor em Porto Alegre, que no último verão registrou temperaturas acima dos 40° C, as pessoas cansam mais e transpiram mais ao praticar atividades físicas. A bicicleta é um meio de transporte que baseia toda a sua mecânica no esforço físico de seu condutor.
Nessas condições climáticas é inevitável a existência de vestiários adequados em seus determinados locais de trabalho, para que os praticantes possam tomar banho e trocar suas roupas adequadas ao veículo. O prédio do jornal Zero Hora, pertencente ao Grupo RBS de Comunicação, possui há sete meses um local voltado para quem pretende ir de bicicleta ao serviço. O espaço possui vestiários equipados com chuveiros para os colaboradores da empresa.
A área conta com um bicicletário com vagas para 70 bicicletas e vestiário feminino e masculino. “Como incentivo para deixarem os automóveis em casa, criamos um espaço para eles guardarem as bicicletas e ao mesmo tempo trocarem de roupas”, explica o engenheiro e gerente de obras do Grupo RBS Gilson Ritter, 42 anos.
O espaço também acaba com outra barreira ligada ao hábito de conciliar a vida profissional a atividades físicas: O constrangimento, visto que muitas vezes os vestiários localizados dentro da empresa causam mal estar para os praticantes de atividades físicas ao passar por seus colegas de trabalhos com trajes mais confortáveis.
“Nós sabemos que isso é um problema cultural no Brasil. As pessoas se sentem mal ao ter de passar por toda a empresa com roupas mais confortáveis. Com os vestiários localizados na parte externa da empresa nós evitamos esse constrangimento. Muitas vezes as pessoas vêm de roupas mais leves e saem do vestiário de terno e gravata”, salienta o engenheiro.
Gilson também lembra que o local não é voltado apenas para uma classe trabalhadora, mas sim para qualquer funcionário de ZH, “sendo funcionário com crachá ele tem autorização para entrar e usar o bicicletário e os vestiários”.
O bicicletário também visa manter uma responsabilidade com a sustentabilidade. “Existe um jardim sob os vestiários para diminuir um pouco o calor no local que também conta com um sistema que capta a água da chuva, para a mesma ser usada nos vasos sanitários e um sistema de captação de energia solar que abastece a iluminação do local que corresponde a 15% do consumo de energia do espaço”, comemora o engenheiro.
O polêmico Fundo Municipal de Apoio à Implantação do Sistema Cicloviário
No dia 21 de maio deste ano, a Câmara Municipal de Porto Alegre aprovou o projeto de Lei Complementar do Executivo que cria o Fundo Municipal de Apoio à Implantação do Sistema Cicloviário.
Mas a revogação de um dispositivo que previa a obrigatoriedade da destinação de 20% das multas de trânsito gerou a revolta dos ciclistas da capital. Segundo Marcelo Sgarbossa, isso é inadmissível, pois essa revogação foi proposta por um vereador e isso caracterizaria um ato inconstitucional, visto que vereadores não podem propor vinculação orçamentária.
“Um vereador da base do governo constrói uma emenda que é inconstitucional e conta com o apoio do governo. Isso é que é o mais esquizofrênico”, acentua Sgarbossa.
Mudança de postura forçada
Em Porto Alegre, segundo dados do relatório de frota em circulação do DETRAN-RS, existem 792.349 veículos que estão aptos a circular e devidamente licenciados. Segundo dados do levantamento de 2013 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) a cidade possui uma população estimada de 1.467.816 habitantes.
Isso dá uma média assustadora de um veículo para cada 1,8 habitante na capital, deixando claro que o nosso trânsito está passando por um processo de afunilamento. Esse talvez seja um dos motivos pelo qual a população opte cada vez mais por meios de transportes alternativos e mais eficientes. “Esse sujeito vinha de ônibus ou de carro e se sentia trancado no trânsito.
Um dia ele testou a bicicleta e viu que era bem melhor”, observa o vereador. Lívia segue o mesmo raciocínio de Sgarbossa. “As pessoas estão percebendo que esse é um modelo insustentável de vida urbana e de transporte e assim elas estão adquirindo outras maneiras de exercer seu direito de ir e vir”, comemora a cicloativista.
Pedalando na chuva
“Bikedrops é uma capa de chuva para que pessoas de todos os gêneros possam pedalar sem medo de se molhar, da garoa ao toró, no inverno ou no verão”, esta é a apresentação da empresa Bike Drops coordenada por Lívia Araújo junto com uma sócia.
O negócio é responsável por produzir capa de chuva para quem pretende desfrutar dos prazeres de andar de bicicleta independente das adversidades do clima.
Segundo Lívia, a ideia de desenvolver as capas de chuva nasceu a partir da demanda de algo que a protegesse da chuva enquanto ela andava de bike: “Eu ando de bicicleta em Porto Alegre há cerca de cinco anos, e quando chovia eu tinha que andar de ônibus e de tanto eu procurar e não encontrar eu resolvi fazer a minha própria capa de chuva, eu e minha sócia, e percebemos que ela era eficiente e as pessoas começaram a perguntar onde a gente tinha comprado. Resolvemos então fazer estudos para desenvolver esse produto”.
A empresa de Lívia conta com variados modelos de capas de chuva e ainda alguns acessórios para quem anda de bike.
O desabafo de um ciclista
Por Jordana Pastro
Porto Alegre possui desde 2009 um Plano Diretor Cicloviário Integrado (PDCI) que tem como objetivo incentivar o uso de bicicletas como meio de transporte. Mesmo com a existência de um número significativo de ciclovias construídas (são ao todo 13 ciclovias espalhadas pela cidade) os ciclistas ainda encontram dificuldade para se locomover.
“O que dificulta é que as ciclovias não tem conexão entre si, eu não posso fazer um caminho do centro até o Barra Shopping por uma ciclovia porque isso não existe, o que nós ciclistas queremos não são faixas uma em cada ponto da cidade e sim uma rede cicloviária que nos permita transitar pela cidade sem problemas”, reclama o ciclista Naian Meneghetti.
Outro ponto destacado por Naian é a falta de respeito por parte dos motoristas. Segundo o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), os condutores de veículos motorizados devem manter uma distância de pelo menos um metro das bicicletas quando elas estiverem na pista, e os ciclistas devem trafegar apenas no lado direito da pista.
E quando a pista no lado direito possui muitas ondulações e falhas o ciclista fica com três opções: primeira, pedalar na calçada, o que o CTB proíbe; segunda, pedalar no lado esquerdo da pista – o que deixa o ciclista propenso a se envolver em acidentes –, e terceiro descer da bicicleta e empurrá-la na calçada.
“O que atrapalha ainda mais são os motoristas que fazem as ciclovias de faixa de estacionamento, então além de já enfrentarmos dificuldades pela falta de continuidades, ainda sofremos com o descaso dos motoristas”, ressalta Naian.
Apesar do número razoável de ciclovias em Porto Alegre, elas são quase inúteis, pois são interrompidas em alguns trechos depois como, por exemplo, a do Beira Rio, o que acaba gerando um problema legal para os ciclistas, já que o CTB proíbe o ciclista de andar na pista onde existem ciclovias.
* Publicado originalmente no site Jornalismo Ambiental.
(Jornalismo Ambiental)
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