Montevidéu, Uruguai, 2/6/2014 – As muito contemporâneas novelas medievais do galês Ken Follett transportam a um tempo em que os ricos tinham tudo e os pobres não tinham nem a si mesmos. Essas histórias ambientadas nos séculos 12, 13 e 14 reconfortam de certo modo o leitor contemporâneo, rodeado de comodidades, liberdades e garantias. A marca daquela época era a pobreza. Com diz o próprio Follett, “o príncipe mais rico vivia pior do que, digamos, um recluso em uma prisão moderna”.
Pobreza e desigualdade não são a mesma coisa, mas reforçam uma à outra. Na pobre Idade Média a desigualdade era terrível: entre a plebe despossuída e os príncipes, senhores e membros poderosos do clero havia um vazio social e econômico que levou séculos preencher.
A sociedade do século 21 vive sob o signo da opulência. Mas o problema é que os ricos estão ficando cada vez mais ricos, em todo o mundo, e os exércitos de pobres saem do fosso com muita lentidão e ficam muito perto da borda e com um pé no vazio.
Na Índia, onde vivem 1,2 bilhão de pessoas, os bilionários se multiplicaram por dez na última década. Em 2001, possuíam 1,8% da riqueza nacional e em 2008 já tinham em suas mãos 26%, indica a organização internacional para o desenvolvimento Oxfam. Por outro lado, a superação da pobreza extrema nesse país é muito lenta: em 1981 havia 429 milhões de indigentes e em 2010 eram 400 milhões, segundo o Banco Mundial.
A desigualdade aumenta em todo o mundo, alertam instituições representativas tanto do pensamento liberal e desregulador quanto o Fundo Monetário Internacional e o Fórum Econômico Mundial (FEM). Segundo o banco Credit Suisse, 10% da população mundial possui 86% de todas as riquezas, enquanto os 70% mais pobres (mais de três bilhões de pessoas) contam com apenas 3%.
Nas pesquisas com as elites mundiais sobre riscos globais que o FEM realiza ressalta-se a iniquidade de renda como um dos principais perigos emergentes.
Estaremos voltando à Idade Média?
Isso parece impossível. As classes médias, ou os “não pobres”, continuam aumentando, sobretudo nos grandes países do mundo em desenvolvimento.
A extrema pobreza diminuiu drasticamente desde a década de 1980 em todo o mundo. Em 1981, mais da metade da população dos países em desenvolvimento era indigente. Em 2010, essa proporção caiu para 21%, segundo o Banco Mundial. Mas as brechas de riqueza e renda aumentam, também em lugares onde as classes médias estão bem assentadas, como Europa e Estados Unidos.
Vários analistas vinculam essas maciças saídas da pobreza e a percepção pública crescente da desigualdade com a erupção de descontentamentos sociais mais ou menos difusos em países tão distintos como Turquia, Brasil ou Chile.
A desigualdade reaparece com força no século 21, como um fenômeno com novas facetas que acompanha o capitalismo globalizado. Nesse cenário, a América Latina se apresenta como uma anomalia: continua sendo a região mais desigual do mundo, mas é a única que começou a reduzir a brecha nos últimos anos.
Em torno da desigualdade se reuniram nos dias 22 e 23 deste mês em Santiago 23 jornalistas de Chile, Argentina, Bolívia, Brasil e Uruguai, convidados pela agência internacional de notícias IPS, com apoio do Ministério das Relações Exteriores da Noruega.
O seminário Outras Caras da Desigualdade: Iniquidade, Corrupção e Economia Informal na América Latina teve o propósito de estimular os jornalistas a informar sobre os núcleos duros do problema, como debilidade tributária, evasão e peso do trabalho informal ou precário.
Especialistas das Nações Unidas e do mundo acadêmico, ativistas pela transparência, pesquisadores e dirigentes sociais e estudantis expuseram dados, números e opiniões como disparadores do debate. Nessa fonte de informação apareceram assuntos opacos que poderiam explicar o descontentamento social na economia mais sólida e de sucesso da América Latina: Chile.
Por exemplo, a evasão do imposto de renda é de 46% no segmento mais rico da população. E as ilhas Caiman e Virgens Britânicas, dois tradicionais paraísos fiscais, estão entre os principais países de origem do investimento estrangeiro direto no Chile.
A pobreza latino-americana diminuiu 27,9% em 2013. Em 1990 havia chegado a 48,5%. E a indigência está em um mínimo histórico de 11,5%, pontuou Martín Hopenhayn, diretor da Divisão de Desenvolvimento Social da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal). Mas há sinais de paralisação nesses setores. E não se progride na estrutura produtiva nem nos êxitos educacionais que “constituem uma causa estrutural da desigualdade”, afirmou.
Além disso, a região arrecadou pouco e mal, com renda tributária direta que constitui apenas 4,4% do produto interno bruto regional, contra 8% dos indiretos, que castigam de maneira desproporcional os pobres. Esse é um detalhe fundamental, segundo Hopenhayn, porque a capacidade fiscal pode corrigir “as dinâmicas que causam a desigualdade do mercado”.
Mas, com todas suas limitações, a experiência da América Latina parece ser inspiradora. “Nos dá a esperança de que a tendência mundial da desigualdade é reversível”, afirma a Oxfam. É a região do mundo onde a renda fiscal cresceu em maior velocidade nos últimos anos, e esse crescimento se traduziu em gasto social para abater a injustiça.
Entre 2000 e 2011, a desigualdade caiu em 14 de 17 países estudados, e cerca de 50 milhões de pessoas subiram para a classe média. Por isso, pela primeira vez na história, há mais população nos setores médios do que na pobreza, segundo o Banco Mundial, embora muitos ainda tenham um pé no vazio.
Depois de tanto tempo ganhando campeonatos de injustiça, a América Latina pode ser a região do mundo onde a igualdade marque uma tendência. Outras mudanças indicarão se é apenas uma moda passageira. Envolverde/IPS
(IPS)
Nenhum comentário:
Postar um comentário