Deveria ser na Cantareira, mas ela não está lá; não deveria ser sobre a Avenida Francisco Sá, mas ela estava lá, arrastando veículos. São Paulo com reservatório seco e ruas alagadas; Belo Horizonte com partes altas já enxutas e a cidade baixa ainda submersa com bocas de lobo mandando jatos de água para cima como se repuxos projetados fossem.
Muito se tem falado de falta e de excesso de água. A falta d’água é atribuída à de chuva e o excesso de água ao descontrole do clima. Simples como isto? Nada mais errado! O descontrole da água nos meios urbanos é uma espécie de punição por pecados originais das cidades, que não cogitaram definir um lugar para a água substituindo o que lhe foi tomado, com vias implantadas em nível colado aos fundos de vales, ou o que lhe foi tornado inacessível pelos telhados e asfalto (placa tecnogênica, ou algo mais pedante, chamado antropostroma de Passerini).
Como começa: Os arruamentos pioneiros não contaram com uma rede de drenagem formal, mas a sua implantação corresponde a um processo de drenagem, não dirigida, mas mesmo assim, uma drenagem; rios e córregos começam a ter cheias maiores que as naturais. São Paulo e Belo Horizonte já tiveram cinco quilômetros de diâmetro. As inundações urbanas duravam o tempo da chuva e na segunda esquina já caíam no meio rural para sossego dos citadinos. A cidade cresce e as vias vão se estendendo ao tempo em que a drenagem se sofistica passando a distinguir-se em categorias de micro e macro.
O conjunto assume forma arborescente, em que córregos, quais galhos tortos, ficam retilíneos levando a água rapidamente aos rios. Em Belo Horizonte, que cresceu rio acima, a árvore da analogia tem galhos grandes para um tronco (o Arrudas da parte baixa) que não pode mais crescer. Bocas de lobo das partes altas, tão reclamadas, ficam mais limpas com a coleta de lixo mais eficiente, e despejam águas abundantes sobre as baixas, onde se dão as inundações, que cobrem bocas de lobo locais, algumas projetando refluxos pela alta pressão de águas das galerias a que dão acesso.
As cidades têm recursos que insistem em não adotar de forma decidida: usar resíduos inertes para absorver parte do fluxo em cabeceiras e fundos de vale não urbanizados; usar telhados como coletores; promover reconexão hidrológica do telhado ao subsolo para evitar a ocorrência de subsolo sedento com enxurradas correndo por cima.
Que fique claro: a falta de água na seca não é somente devido a falta de chuva assim como o excesso nas águas não é apenas por causa das mudanças climáticas, mas por excesso de descarga. Pode piorar porque esse excesso leva com a água o solo que o processo geológico não substitui na vida curta da civilização. E pensar que não se fala do solo erodido como um recurso não renovável!
No plano mais amplo, que envolve o campo, pergunto por que defendemos todas as nascentes, inclusive das voçorocas, se queremos a recarga dos aquíferos, sendo elas tão eficazes dispositivos geológicos de descarga dos aquíferos!
* Edézio Teixeira de Carvalho é engenheiro geólogo.
** Publicado originalmente no site da revista Eco21.
(Eco21)
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