“No Congresso Nacional há propostas que, se forem aprovadas, podem afetar mais 2 milhões de hectares só na região amazônica”, adverte o biólogo Enrico Bernard
“Durante um longo período, de 1981 até recentemente, o governo brasileiro respeitava os limites das unidades de conservação nacionais. Agora, em função de uma visão extremamente desenvolvimentista, essas áreas protegidas passaram a ser vistas como um empecilho, como um estorvo, e a solução é: se está atrapalhando, desfaz”. A crítica é de Enrico Bernard, professor da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE e um dos autores da pesquisa Redução, Declassificação e Reclassificação de Unidades de Conservação no Brasil, que aponta um resultado “alarmante” em relação à perda de unidades de conservação no país. De acordo com o pesquisador, é espantoso verificar que, entre a década de 1980 e os anos 2000, houve pontos isolados de redução das unidades de conservação. Entretanto, as ações realizadas nos últimos anos são responsáveis por quase toda a perda de 5,2 milhões de hectares das unidades.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por telefone, Bernard explica que dez fatores, entre os quais o agronegócio, o turismo, a especulação imobiliária, a construção de hidrelétricas e a geração de energia, são responsáveis pelo diagnóstico apresentado.
Segundo ele, depois da publicação do Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC, no ano 2000, várias unidades de conservação foram reclassificadas, mas a situação piorou oito anos depois. “A situação, no entanto, mudou de figura a partir de 2008, quando observamos um grande ciclo novo de alteração de limites, de redução e de declassificação das áreas. Esse pico de 2008 não é à toa. Em 2007, a Empresa de Pesquisas Energéticas – EPE, ligada ao Ministério de Minas e Energia, publicou um documento que se chama Matriz Energética 2030, no qual diz claramente que, para atender à demanda energética do Brasil até 2030, todos os grandes rios da Amazônia terão de ser barrados. No ano seguinte, em 2008, começamos a ver eventos de alteração de limites das unidades de conservação da Amazônia. Então, o que motivou essa alteração a partir de 2008 está muito relacionado com a geração e transmissão de eletricidade”.
O pesquisador frisa que mais de 70% da área perdida estava localizada na Região Amazônica, onde se concentram as maiores unidades de conservação. “Algumas unidades estaduais simplesmente desapareceram. Rondônia é um estado que tem um problema sério, porque algumas unidades de conservação de Rondônia primeiro foram reduzidas e depois simplesmente desapareceram”. E dispara: “O que o Brasil está fazendo é um tiro no pé, porque o país depende muito da geração hidrelétrica, e vários dos rios que abastecem essas hidrelétricas passam por dentro ou têm suas nascentes nas unidades de conservação. Então, acabar com os parques e reservas pode comprometer até a geração de eletricidade do Brasil”.
Enrico Bernard é graduado em Ciências Biológicas pela Universidade de São Paulo – USP, mestre em Ecologia pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia e doutor em Biologia pela York University, Canadá. É responsável pelo Laboratório de Ciência Aplicada à Conservação da Biodiversidade e professor de Biologia da Conservação no Departamento de Zoologia da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em que consiste a pesquisa que aponta como resultado a perda de 5,2 milhões de hectares da conservação da natureza?
Enrico Bernard – Nesta pesquisa, analisamos os chamados eventos de declassificação, reclassificação e redução de unidade de conservação no Brasil. A declassificação é quando uma área perde o seu espaço de proteção, ou seja, ela deixa de existir; a reclassificação é quando ela muda de categoria; e a redução é quando ela perde área, mas continua existindo.
A pesquisa investigou todos os eventos de alteração de limites das unidades de conservação no Brasil no período de 1981 até dezembro de 2012. Identificamos 93 exemplos onde houve alteração de limite de categoria ou de existência de unidades de conservação no país. Esses 93 exemplos resultaram na perda efetiva de 5,2 milhões de hectares de áreas protegidas.
Quando me refiro a áreas protegidas, estou me referindo às unidades de conservação, porque não investigamos terras indígenas nem quilombolas.
Investigamos o que estava gerando esses eventos e fomos atrás dos chamados “drivers” que estavam provocando essas alterações. Identificamos dez ‘drivers’, dez agentes, ou seja, dez forças que resultaram na operação da declassificação e da redução dos limites de áreas protegidas no Brasil. Nós categorizamos esses drivers em dez classes: a proposta de novas categorias quando uma área, antes do Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC, foi alterada; adequação ao próprio SNUC, que também fez com que várias categorias fossem reclassificadas; agronegócio; assentamentos rurais; turismo; sobreposição com outras áreas; especulação imobiliária; geração e transmissão de eletricidade; um ‘driver’ político, que é quando nós não conseguimos identificar, mas a proposta de ou extinguir ou reduzir uma área vem diretamente de uma Assembleia Legislativa; e o último driver é o aumento da conservação. Então, por trás desses 93 exemplos, temos todas essas forças agindo.
Depois disso, investigamos, temporalmente, o que estava acontecendo e encontramos um padrão muito alarmante: de 1981 até 2000, praticamente não houve alteração de áreas protegidas no Brasil; entretanto, em 2001, ocorreu o primeiro pico de alteração, e ele é decorrente da publicação do SNUC um ano antes. Quer dizer, o SNUC foi publicado em 2000, e em 2001 várias unidades de conservação foram reclassificadas para se adequar às novas categorias do SNUC. Identificamos que esse ciclo era positivo e de fortalecimento institucional. Contudo, entre 2001 e 2007, observamos alterações nas unidades de conservação estaduais em Rondônia e no Mato Grosso, principalmente por causa do agronegócio. A situação, no entanto, mudou de figura a partir de 2008, quando observamos um grande ciclo novo de alteração de limites, de redução e declassificação das áreas. Esse pico de 2008 não é à toa. Em 2007, a Empresa de Pesquisas Energéticas – EPE, ligada ao Ministério de Minas e Energia, publicou um documento que se chama Matriz Energética 2030, no qual diz claramente que, para atender à demanda energética do Brasil até 2030, todos os grandes rios da Amazônia terão de ser barrados. No ano seguinte, em 2008, começamos a ver eventos de alteração de limites das unidades de conservação da Amazônia.
Então, o que motivou essa alteração a partir de 2008 está muito relacionado com a geração e transmissão de eletricidade. Ou seja, a partir de 2008 teve um pico de perda de áreas protegidas no Brasil em função de geração e transmissão de eletricidade.
IHU On-Line – Esse valor de 5,2 milhões de hectares corresponde a que regiões?
Enrico Bernard – Mais de 70% do que foi perdido está na Região Amazônica, porque ela concentra as maiores unidades de conservação. Nós fizemos também uma classificação por área, pelo tamanho da unidade que foi afetada, e houve um padrão interessante: as unidades “menorzinhas”, com menos de mil hectares, são reclassificadas, ou seja, simplesmente mudam de categoria. Já as unidades maiores, com mais de cem mil hectares, ou deixam de existir ou são reduzidas. Então, quanto maior a unidade, maior o ataque sobre ela no sentido de perda de área e de proteção. Se for “pequenininha”, muda de categoria; se for grande, extirpa a área ou simplesmente faz com que ela deixe de existir.
Algumas unidades sofreram mais de um evento. Teve uma unidade que foi reduzida uma vez e depois foi totalmente declassificada, ou seja, deixou de existir. Então, o que está acontecendo é que, parodiando um certo ex-presidente do Brasil, “nunca antes na história deste país” se atacou tanto áreas protegidas como agora.
IHU On-Line – O que isso sinaliza em relação ao Sistema Nacional de Unidades de Conservação?
Enrico Bernard – Demonstra que o Brasil está passando por um momento crítico em relação à área ambiental. Durante um logo período, de 1981 até recentemente, o governo brasileiro respeitava os limites das unidades de conservação nacionais. Agora, em função de uma visão extremamente desenvolvimentista, essas áreas protegidas passaram a ser vistas como um empecilho, como um estorvo, e a solução é: se está atrapalhando, desfaz. Existem iniciativas extremamente perigosas, como a da frente parlamentar que está sendo constituída no Congresso Nacional e que conta com a adesão de quase 240 deputados. Essa frente parlamentar tem como objetivo alterar a situação das unidades de conservação do Brasil. Ela está se formando agora, dominada amplamente pela bancada ruralista.
As unidades de conservação brasileiras estão com problemas orçamentários, o Brasil tem as maiores unidades de conservação do mundo e várias delas não têm espaço para trabalhar.
Então, junto com tudo isso, ainda tem uma iniciativa formal de vários deputados que querem atacar e alterar o SNUC. Eu costumo dizer que estamos passando pelo momento mais delicado da questão ambiental da história recente do Brasil. Conquistas que a sociedade brasileira conseguiu há quase 40 anos estão sendo simplesmente rasgadas e desfeitas neste momento. Por mais paradoxal que possa parecer, durante o regime militar os parques das reservas brasileiras não eram tão atacados como são agora, quando o país vive em plena democracia. Conquistas que a sociedade brasileira fez no que se refere à legislação ambiental, que demoraram 30, 40 anos para se concretizarem, estão sendo simplesmente rasgadas, colocadas em segundo plano. Este é um momento extremamente delicado para quem acredita que as unidades de conservação são importantes — e eu sou uma dessas pessoas.
Acredito que as unidades de conservação são necessárias, e é com muita preocupação e revolta que vemos a situação que as unidades de conservação brasileira estão experimentando.
IHU On-Line – Quais são esses projetos a que o senhor se refere?
Enrico Bernard – No nosso trabalho, dividimos os eventos que já ocorreram e as propostas de novos eventos. As propostas, nesse caso, são restritas à Amazônia. Portanto, no Congresso Nacional há propostas que, se forem aprovadas, podem afetar mais 2 milhões de hectares só na região amazônica. Ainda podem ocorrer, só na região amazônica, pelo menos cinco propostas que estão sendo avaliadas e que podem afetar mais 2 milhões de hectares de áreas protegidas. Agora, ninguém sabe o que essa frente parlamentar irá propor; pode vir uma caixinha de surpresas e podemos ter várias propostas novas sendo avaliadas em um futuro próximo. A história nos mostra que a bancada ruralista não é nem um pouco solidária às unidades de conservação brasileira.
IHU On-Line – Dessas unidades analisadas, é possível avaliar qual delas está em situação mais crítica?
Enrico Bernard – Algumas unidades estaduais simplesmente desapareceram. Rondônia é um estado que tem um problema sério, porque ali algumas unidades de conservação, primeiro, foram reduzidas e, depois, simplesmente desapareceram.
É preocupante que o governo brasileiro resolva atacar as unidades de conservação. Inclusive, o que o Brasil está fazendo é um tiro no pé, porque o país depende muito da geração hidrelétrica, e vários dos rios que abastecem essas hidrelétricas passam por dentro ou têm suas nascentes nas unidades de conservação. Então, acabar com os parques e reservas pode comprometer até a geração de eletricidade do Brasil.
IHU On-Line – Nos últimos dias houve reação dos ambientalistas por conta da iniciativa da Empresa de Pesquisa Energética – EPE, de realizar novas pesquisas em unidades de conservação com o objetivo de construir novas hidrelétricas. Maurício Tolmasquim argumentou que a EPE apenas está realizando pesquisas. Como o senhor avalia iniciativas como essas diante do atual quadro das unidades de conservação?
Enrico Bernard – A pergunta que faço ao Tolmasquim é: “A EPE vai pesquisar, gastar dinheiro se não tem a intenção de construir?”. Então esse “papo” de que estão verificando o potencial das unidades de conservação é balela. Existem pesquisas de potencial hidrelétrico na região amazônica desde 1970; eles já sabem exatamente quais rios serão barrados. Na Matriz de Energia de 2030 está tudo apontado, já se sabe qual é o potencial hidrelétrico dos rios.
Então, esse discurso do Tolmasquim é mentira, porque não vão investir dinheiro para pesquisar potencial se não tiver intenção de construir. O senhor Tolmasquim está tentando “tapar o sol com a peneira”, está colocando um discurso bacana, mas sabemos que nenhuma empresa de pesquisa investe dinheiro, recurso, tempo e energia, se não houver a intenção clara de explorar o recurso. Então, a justificativa dele não me convence.
IHU On-Line – O Código Florestal tem muitas brechas para intervenção nas unidades de conservação?
Enrico Bernard – O modo de operar é exatamente explorar as brechas legais. Então, nesse sentido, Tolmasquim foi bem claro quanto à pesquisa nas unidades de conservação: “A lei não diz nem que sim, nem que não”. Então, quando você cai na zona cinzenta, são exploradas exatamente brechas e falhas da lei. Isso deixa claro a maneira como algumas pessoas veem a utilização dos recursos naturais no Brasil: “Se não diz nem que sim, nem que não, então é sinal verde, vamos explorá-los”.
* Publicado originalmente no site IHU On-Line.
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